O espírito natalício

Ainda há alguns dias estava a ouvir o programa «Antena Aberta» na RDP-Açores, a caminho de casa depois de um dia de trabalho, e dei por mim a prestar atenção à discussão melancólica e nostálgica sobre a perda de significação da Consoada, com todos os adjectivos depreciativos sobre a nossa sociedade moderna que daí advém.

«hipocrisia», «consumismo», «consumista», «vazio de significado», «superficial», etc. etc., todos estes foram epítetos utilizados para caracterizar o Natal dos nossos dias, em detrimento de um Natal edílico, santo, religioso e bastante comunitário a que os diversos intervenientes na discussão se aludiam e reportavam.

E dei por mim a pensar que vivemos num Natal pagão, onde as compras e as ofertas são o mais importante da festa, em que os manjares e as mesas recheadas são mais importantes que o convívio familiar e de amizade, e que isto é tudo uma farsa e o espírito do Natal foi, deveras, corrompido de vez.

E depois pensei: ainda bem! Ainda bem que não temos o menino Jesus a distribuir prendas, mas sim um velho bonacheirão que nos julga consoante a nossa actuação ao longo do ano - os meninos que se portam bem, têm muitas ofertas; os que se portam mal, têm poucas ou nenhumas. Mas que melhor exemplo moral para que nos portemos bem. O que é que esperavam? «Se te portares bem, na noite da Consoada recebes um beijinho e muitos desejos de felicidade!»? 

Mas que Natal é esse? Que Natal triste não era a celebração do nascimento do salvador do mundo com apenas umas iscas de bacalhau no prato e alguns pequeno luxos que agora se compram no hiper por tuta e meia.

Que Natal queriam? Um Natal onde o que importa é a união das pessoas em torno de uma mesa despida? Em que o sentimento era tudo e tudo era o mais importante? 

Oiço as pessoas mais velhas falarem do verdadeiro espírito de Natal e reparo, com tristeza, que falam de um tempo de miséria, de necessidades, de um tempo onde a única oferta era uma fatia de massa sovada que a mãe cozinhava no forno de lenha às escondidas - luxo de gastos que o restante tempo diário não permitia?

Que Natal era esse onde se ia à missa do Galo prestar homenagem a um bebé que não trazia nada de bom ao mundo senão o acto da criação do seu pai (há milhares de anos atrás) e muita fome, miséria e pobreza?

Olhando para trás e para agora, sinto-me muito feliz por ter nascido numa época em que o Natal tem que ver com mesa farta, prendas, brincadeiras e mimos extra por não nos termos tornado toxicodependentes ao longo do ano, por não termos perdido o ano lectivo ou por não termos feito algo que fosse socialmente reprovável.

Isto é que é o Natal: um balanço final, feito por um homem gordo de vermelho e branco (patrocinado pela Coca-Cola), em que todos recebemos alguma coisa: porque todos somos humanos e passíveis de falharmos.

O que quero no Natal é «closure», uma certa paz de alma e uma certa ordenância do caos que me rodeia. Nem que essa ordem venha no formato de ofertas e de jantares e de bebida e de risos e de gargalhadas e de bebedeiras. Não me importo.

Importo-me, isso sim, que o meu vizinho passe fome o ano inteiro e as Associações humanitárias e demais instituições públicas e sociais só lembrem dele quando estamos nesta «quadra» de amor, paz e felicidade.

bem hajas, Pai Natal

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