Crónica de uma Queda Anunciada

A característica que melhor define a actuação da Igreja Católica ao longo destes últimos 2009 anos chama-se «hipocrisia». É certo e sabido que a diferença entre a palavra da Bíblia e a regulamentação imposta pelos seus representantes tem motivado acesa discussão desde que a Igreja Católica é igreja. Um pouco de leitura da sua história será suficiente para se estabelecer o confortável espaçamento crítico entre o que está escrito e o que é instituído como prática da igreja.

Não quero com isto questionar as palavras da Bíblia – elas estão lá; nem quero, de forma alguma, questionar a autoridade da Igreja perante os seus fiéis – ela existe. Estou apenas a referir-me à diferença que existe entre ler-se «este é o meu sangue» e o assumir-se dogmaticamente que o vinho se transforma verdadeiramente em sangue – é uma questão de fé. Há igrejas que consideram um acto simbólico; a Católica vê o milagre da transubstanciação.

Também não nos podemos esquecer – nem convém, a bem da verdade – que as igrejas que surgiram através de cisões com a Igreja Católica têm como base de desentendimento o significado e posterior prática dos rituais, pressupostos e actuações da mensagem de Cristo. O Novo Testamento é uma base de referência que não é questionada; o que são questionados são os rituais e as obrigações instituídas pelos representantes da Igreja.

Ora bem, as recentes declarações do Papa, em pleno continente Africano, não só caíram mal na comunidade mundial, como geraram uma onda de protesto vinda dos mais variados países, com expressões diversas desde a condenação pública ao envio de um milhão de preservativos para combate à doença.

Num continente que está a braços com a maior epidemia na história do Homem, e onde estão identificados mais de 70% dos casos de infecção do VIH por falta de informação, por preconceitos ou superstições retrógradas acerca da sexualidade, o mais alto representante político da Igreja Católica não tinha mais nada que dizer senão que o preservativo não só não é solução para prevenir a infecção, como em muitos casos é a causa dessa mesma infecção. Então? Estamos a brincar aos líderes radicais?

A comunidade mundial torceu o nariz. E com razão. Andamos nós, cidadãos, docentes, agentes sociais, amigos, companheiros, irmãos e irmãs, numa já longa “cruzada” (a ironia) contra esta doença, informando, ensinando, tentando mudar hábitos sexuais de risco, e é esta a orientação da Igreja? Estamos nós, o resto do mundo, lutando diariamente contra a ignorância humana, em prol da consciencialização e de uma sexualidade responsável, gastando energia e dinheiro em campanhas e acções de sensibilização para tentar manter os nossos semelhantes vivos e livres desta doença, e são estas as palavras do chefe da Igreja Católica?

Ficou muito mal ao senhor Papa, da mesma forma que ficou muito mal aos católicos num todo. Já havia acontecido antes e a rejeição foi semelhante (embora mais contida); desta vez, fruto talvez da pouca popularidade deste Ratzinger, a reacção foi mais agressiva. E ainda bem que o foi.

Como é que podem haver dúvidas acerca da razão da crise de vocação de que tanto se queixam os líderes católicos? Como é que alguém pode procurar conforto e amparo numa igreja autista e desfasada da realidade? E de novo chamo a atenção para o facto de esta crítica estar dirigida aos homens que gerem a Igreja e não à palavra escrita na Bíblia. Já expliquei porquê.

A sorte desta instituição (e se calhar a razão pela qual o título deste artigo jamais se concretizará) é que o seu maior defeito é também a sua maior virtude. Isto é, habituados que estão à velha máxima do «faz o que eu digo e não faças o que eu faço», os católicos têm plena consciência de que entre o que o padre diz e aquilo que é suposto ser feito vai uma grande distância. Tem sido assim, especialmente após o Renascimento e o desaparecimento da ignorância generalizada da Idade Média.

Não obstante, as palavras do Papa caíram mal, como um soco no estômago de todas as pessoas para quem o valor da vida deverá ser mais importante do que a moral. E torna-se estranho, quando a defesa da vida está na base da argumentação utilizada contra a IVG e acaba por ser questionada quando a Igreja rejeita um método que preserva a vida.

Alegar que a mudança das consciências das populações é o caminho ideal para evitar o contágio, está certo. E o mundo concorda. Agora, fechar os olhos para o presente e invocar a moral proibitiva do uso do preservativo, apesar de, em 2007, 22 milhões de pessoas em África viverem com o vírus do VIH, 1,5 milhões de pessoas morreram por causa da SIDA e 11 milhões de crianças ficaram órfãs é, no mínimo, aterradoramente inconsequente. «Shame on you, mr. Pope, shame on you…»

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