Tapar o Sol com a Peneira - A Questão dos Genéricos

O governo português criou recentemente a possibilidade de qualquer pessoa, ao dirigir-se à farmácia para levantar medicamentos que lhe tenham sido prescritos, escolher junto do farmacêutico entre levar um genérico ou um medicamento de marca.

A minha primeira reacção a esta notícia foi, obviamente, uma de alegria e contentamento. Foram já várias as vezes em que abordei um ou outro médico, na altura da prescrição, no sentido de me serem prescritos genéricos e a resposta foi, infelizmente, sempre a mesma: não. A possibilidade de ser eu a escolher é, a uma primeira análise, algo de bom.

Não nos esqueçamos que uma parte substancial do material de escritório dos médicos é fornecida por grandes empresas de produtos farmacêuticos de marca; assim como também não podemos descurar o facto de os médicos serem agraciados anualmente por essas empresas, com base nas prescrições e nos lucros gerados por cada médico.

Ao analisar a notícia, a alegria rapidamente se torna em tristeza. Uma profunda tristeza porque a tomada de posição do Governo português acaba por se tornar uma declaração de derrota na luta contra a hegemonia da classe médica.

A possibilidade de prescrição de medicamentos genéricos foi criada para permitir (pensava-se) que as pessoas solicitassem genéricos, uma vez que são substancialmente mais baratos e fazem o mesmo efeito. No entanto, a verdade é que a prescrição dos genéricos em Portugal cifrou-se muito aquém do esperado, mormente porque os médicos se recusam a perder os seus privilégios e regalias.

O princípio da prescrição deveria ter sido assumido à partida por obrigação e não por decisão médica. Ou seja, ao invés de um médico poder escolher se quer ou não prescrever um genérico, a prescrição deveria contemplar preferencialmente o genérico e só depois, caso não houvesse o genérico pretendido, optar-se por um medicamento de marca. É necessário provar haver uma razão para se receitar algo mais caro com o mesmo efeito. 

Uma vez que a classe médica assumiu a mesma postura de altivez e desinteresse egoísta que tanto a tem caracterizado na sociedade portuguesa, o Governo teve de optar por uma outra forma de potenciar a prescrição de genéricos. Como? Colocando a escolha na mão do doente e do farmacêutico. Estranhamente, também para este não são os medicamentos genéricos aqueles que mais lucro lhes dá.

Então em que ficamos? Aparentemente, numa enorme cobardia do Governo em pôr mão numa das classes mais privilegiadas da sociedade portuguesa. Ao contrário do que aconteceu com outras (como a docente, os funcionários públicos, advogados e solicitadores ou enfermeiros), com as quais o governo assumiu uma postura de intransigência e de desconfiança, sob a égide do controlo orçamental e da mudança do paradigma social em que nos encontramos; ao contrário do que aconteceu com estas classes, dizia, o governo está a tentar de outras formas enfrentar a classe médica sem declarar uma guerra aberta.

E porquê? Porque se tem medo das represálias eleitorais e da Ordem dos Médicos. Não há coragem política para se chamar a classe médica à razão. À razão de que, independentemente de serem muito bem pagos, não deixam de ser membros de uma sociedade que se quer justa e que trata todos os seus membros como iguais.

Não há coragem política para obrigar os médicos a seguirem as regras normais de trabalho, às quais as pessoas normalmente obedecem, como sejam: entrar a horas, picar o ponto, atender cordialmente os seus doentes, acompanhar os casos sem os encaminhar para os seus consultórios privados, terminar o dia de trabalho, picar o ponto e voltar para casa. E se, por uma razão credível e necessária, o médico (ou médica) estiver de prevenção, que o esteja efectivamente. Na eventual relutância (ou recusa) em atender quem quer que seja quando em prevenção, a instauração de um inquérito e a aplicação de sanções com efeito.

Acredito que a classe médica acabará por se nivelar com a restante sociedade. Cada vez mais ser médico deixará de ser sinónimo de «quero, posso e mando» e as pessoas – resultado também da formação e da era de informação em que nos encontramos – serão cada vez menos complacentes e mais exigentes com a prestação de cuidados médicos. Até lá, esperemos que esta possibilidade de escolha entre o genérico e o medicamento seja um passo nessa direcção.

 

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