A arte de não se ser artista

A protagonista da série televisiva Hannah Montana, Miley Cyrus, veio pedir desculpas publicamente por ter autorizado a publicação de uma fotografia sua na revista Vanity Fair a qual era, segundo alguns críticos norte-americanos, de cariz demasiado sensual para uma rapariga de quinze anos de idade.

Uma semana antes, a mesma actriz tinha afirmado que a sessão fotográfica decorrera não só na presença de seu pai, o conhecido cantor Billy Ray Cyrus, como também não achara que a foto fosse de algum modo vulgar ou provocatória.

Contudo, uma semana depois, a mais recente coqueluche da Disney deu o dito por não dito e pediu desculpas pela publicação da sua fotografia na revista. E nem facto de a fotógrafa ter sido Annie Leibovitz (que já fotografou Mikhail Gorbachev, Demi Moore, John Lennon e Yoko Ono, entre outros) tornou o caso menos polémico. O substrato retrógado-puritano norte-americano inflamou-se e este «escândalo» tomou proporções verdadeiramente alarmistas.

A hipocrisia puritana do assexuado e asséptico a que a sociedade norte-americana nos tem habituado ao nível do discurso, embora exageradamente desfasado da prática, não me preocupa per se. A história tem-nos ensinado que os velhos hábitos custam a desaparecer. Mas, neste caso, o que me preocupa é que, por detrás de uma foto artística (e aqui importa referir que a fotografia é de perfil e só se vislumbram algumas formas das costas da jovem actriz) se escondam agendas políticas conservadoras que continuam a centrar as atenções no ser humano por detrás do artista e não na arte para além do ser humano.

Isto é, o que está em causa não é a Miley Cyrus, jovem actriz de 15 anos que, por acaso, tem um contrato com a Walt Disney. O que está em causa é que a jovem Miley Cyrus é refém e propriedade de um conjunto de valores aos quais o estúdio está conotado e, como tal, deixa de ter vida própria para além da série de sucesso que protagoniza.

Não é preciso referir que foi grande a quantidade de críticos a acharem inapropriado para uma rapariga de (apenas) quinze anos ser fotografada de costas com um lençol a cobrir a maior parte do corpo. Mais, condenaram o facto de um «modelo» social para a juventude norte-americana se ter dado ao luxo de se afastar da «correcta» linha de orientação puritano-familiar da Walt Disney e enveredar por um caminho mais artístico.

Torna-se também preocupante o facto de as declarações da jovem actriz (que ainda não é maior de idade) assim como o seu agenciamento serem da responsabilidade dos seus pais. Assim, não só se torna refém e propriedade de um estúdio, torna-se um fantoche de ventríloquo de um pai.

Não devemos ter dúvidas: a arte é muitas vezes incompatível com valores familiares e sociais, particularmente os tradicionais. Torna-se marginal e, como tal, bastante autónoma da evolução da sociedade, permitindo que o arrojado, o criativo e a novidade surjam espontaneamente. E até mesmo alguns dos preconceitos e valores da arte são, eles mesmos, desajustados da sociedade presente, embora enquadrados num futuro – às vezes não muito longínquo. Estas questões não se colocariam decerto na altura dos gregos acerca da utilização de modelos jovens seminus. Alguns até aos nossos olhos actuais demasiado jovens. Não obstante, ninguém contesta a qualidade e a preciosidade que são os quadros da antiguidade clássica.

Mais, esta questão da não separação do indivíduo da personagem que representa no ecrã arrasta consigo a necessidade de a sociedade criar personagens que servem de modelo social a seguir pelos comuns cidadãos e que servem, e muito, os interesses individuais de grupos específicos de pessoas.

Os neo-conservadores terão grandes reservas em financiarem um programa televisivo cujo protagonista pugne pelo socialismo mais à esquerda. E vice-versa. Há uma necessidade social de se criarem modelos televisivos, alguns até musicais, cinematográficos e artísticos, que servem de porta-voz de interesses alheios.

É necessário a educação no sentido da diferenciação do artista e da sua identidade como indivíduo. É necessário apelarmos à análise das obras como referentes culturais próprios e não como meras exteriorizações puras e duras dos valores sociais, familiares e legais do indivíduo como artista.

Ao enveredarmos pelo caminho oposto, convenientemente aceitando e defendendo a colagem de identificação entre o artista e a arte, corremos o risco de limitarmos a existência dos artistas às necessidades e conveniências sociais de determinado momento, definidas por grupos de interesse. Estaríamos bem tramados se a pressão social e a necessidade de bodes-expiatórios permitissem a culpabilização do artista por ser detentor de uma visão diferente ou desviante do status quo.

Coitado do Shakespeare se pudesse ter sido acusado de incentivar o suicídio de casais jovens apaixonados cujos pais não se entendiam de todas as vezes que um casal de apaixonados decidisse tirar as suas vidas porque os seus pais não entendiam a sua relação. O Romeu e Julieta seria queimado e proibido de ser estudado nas escolas, e o seu autor detido durante alguns anos nos calabouços.

O conceito de artista encontra-se em mutação. E convém estarmos atentos à sua evolução. Não tarda, teremos de ter muito cuidado nas nossas escolhas musicais e culturais, sob pena de sermos olhados com desconfiança por gostarmos de expressões artísticas diferentes das aceites pelos valores sociais. Não vá o diabo tecê-las e quem ouve Nirvana e é escritor, então, logicamente, defende o suicídio com caçadeira; ou quem ouve Amy Winehouse e falta a algumas aulas é, logicamente, um toxicodependente.

3 comentários:

PedromcdPereira 5 de junho de 2008 às 23:56  

O problema que referes é mais complexo do que parece. É sem dúvida uma questão de puritanismo. No entanto se comparares com Portugal, isso NUNCA aconteceu. O puritanismo é tal que um problema como o que descreves nem sequer pode acontecer no nosso país.

Para já não há cá liberdade criativa nem educação popular para haver uma revista como a Vanity Fair. Portugal tem uma long journey pela frente.

Depois, nem sequer se põe a hipóteses de uma miúda de 15 anos (putativa modelo social) fazer umas fotos seminuas artísticas. Simplesmente isso não existe. E aí, os puritanos não precisam de sair das tocas. Aliás, eles estão aí disfarçados de liberais com currículo. Não sejamos ingénuos ao ponto de pensar que os conservadores são os tipos do CDS. Esses são os que dão a cara. Assim como é fixe que na américa se dê a cara por ideias retrógradas e não pelos bastidores à boa velha maneira europeia.

Posso não concordar com eles, mas sei quem são.

PedromcdPereira 6 de junho de 2008 às 00:05  

A cena da arte e do estatuto do artista, para mim é uma questão de educação parental/familiar. Repara que na América ela pôde fazer as fotos, e depois veio pedir desculpa. Como dizes, parece que foi fantoche do pai. É uma questão de educação e não cultural. Não te esqueças do Saramago e da cena do Tal Canal. Isso sim era cultural. Isso sim era o estado a fazer das suas tropelias.

A pressão social é mais suportável que a imposição estatal. O artista tem sempre uma base de apoio, os que apreciam o que faz. Se opta por modificar o seu trabalho por pressão social ou económica é sempre uma opção sua.

Rogério 17 de junho de 2008 às 02:30  

Concordo contigo, não posso deixar de ficar desalentado com a situação. Não pela recusa da rapariga (que isso percebo derivar da sua decisão pessoal), mas pela pressão social em nome de um «modelo» a manter. Não nos esqueçamos que a decisão de recuar se deveu única e exclusivamente ao facto de os «puritanos» a terem acusado não como indivíduo mas como uma personagem que ela tem vindo a representar para a Disney.

No que concerne a Portugal, tens toda a razão. E não penses que a minha ideia de conservadores se prende apenas com o CDS. Vai da extrema-esquerda à direita (uma vez que não possamos falar numa extrema-direita em Portugal ;-)

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